Todo mundo tem um refúgio a que costuma
recorrer para aliviar o peso dos problemas. Pode ser um lugar tranquilo,
talvez a praia. O pensamento em uma pessoa querida. Uma extravagância,
como compras ou aquele prato proibido pelo médico.
Ou pode ser o armarinho de remédios de casa.
Na farmácia não se encontra produto
descrito como “paz em drágeas” ou “xarope de paz”. Mas muita gente acha
que é isso o que deveria dizer o rótulo do Rivotril, um ansiolítico (ou,
popularmente, um calmante). Rivotril é prescrito por psiquiatras a
pacientes em crise de ansiedade – nos casos em que o sofrimento tenha
causa bem definida. Mas tem sido usado pelos brasileiros como elixir
contra as pressões banais do dia a dia: insônia, prazos, conflitos em
relacionamentos. Um arqui-inimigo dos dilemas do mundo moderno.
Tanto que o Brasil é o maior consumidor do mundo
em volume de clonazepam, o princípio ativo do remédio. Serão 2,1
toneladas em 2010, o que coloca o Rivotril no topo das paradas
farmacêuticas daqui. É o 2º remédio mais vendido no país, à frente de
nomes como Hipoglós e Buscopan Composto – em 2004, era o 4º da lista. Só
perde agora para o Microvlar, anticoncepcional com consumo atrelado à
distribuição pelo governo via Sistema Único de Saúde (SUS).
E olhe que o Rivotril é um remédio tarja
preta. Só pode ser comprado na farmácia com a receita do médico em
mãos. “A maior parte das vendas desse medicamento acontece via
prescrição. Mas muitos conseguem o remédio com receita em nome de outros
pacientes ou até pela internet”, afirma Elisardo Carlini, diretor do
Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, da Unifesp.
Em alguns casos, até há a prescrição – mas de um médico não
especialista, segundo Alexandre Saadeh, professor do Instituto de
Psiquiatria da USP. “Ginecologistas costumam prescrever Rivotril para
pacientes que sofrem fortes crises de TPM”, diz. Até porque poucos
brasileiros vão ao psiquiatra, de acordo com a Roche, laboratório
responsável pelo Rivotril. “Grande parte dos brasileiros tem dificuldade
de acesso a psiquiatras, e isso está relacionado à prescrição do
Rivotril por médicos não especialistas”, afirma Maurício Lima,
diretor-médico da Roche.
Foi assim, por via não ortodoxa, que a
popularidade do Rivotril cresceu. Não é difícil ouvir donas de casa
recomendando o remédio a uma amiga que tem tido problemas para dormir.
“Quem nunca ouviu que uma tia ou uma vizinha toma Rivotril há 20 anos e
só dorme com isso?”, pergunta o professor de psiquiatria do curso de
medicina da PUC de São Paulo, Carlos Hubner. Ou achar relatos do tipo
“Rivotril é meu melhor amigo” no Orkut e no Facebook. Nessas histórias, o
Rivotril aparece sempre como um freio para sentimentos como medo,
rejeição, angústia, tristeza e ansiedade. “Houve Big Brother em que eu
estava com muita ansiedade e usava Rivotril para entrar no ar”, disse
Pedro Bial em entrevista à revista Playboy. O remédio tem sido usado até
para cortar o efeito de outras drogas, segundo o psiquiatra André
Gustavo Silva Costa, especialista em tratamento de dependentes químicos.
“Jovens têm tomado o Rivotril para cortar o efeito de drogas como
cocaína. Eles querem dormir bem para conseguir trabalhar no dia
seguinte”, diz.
O que é que o Rivotril tem?
Mas que mágica é essa? Quando somos pressionados, algumas áreas do cérebro passam a trabalhar mais. Vem a ansiedade. O Rivotril age estimulando justamente os mecanismos que equilibram esse estado de tensão – inibindo o que estava funcionando demais. A pessoa passa a responder menos aos estímulos externos. Fica tranquila. Ainda que o bicho esteja pegando no trabalho, o casamento indo de mal a pior e as contas se acumulando na porta. É essa sensação de paz que atrai tanta gente. Afinal, a ansiedade traz muito incômodo: suor, calafrios, insônia, taquicardia… “Muitas vezes o sofrimento se torna insuportável. O remédio é valioso quando o paciente piora”, diz Silva Costa. Para a carioca Bruna Paixão, de 32 anos, funcionou. “Um dia tomei uma bronca do meu chefe e fiquei péssima. Só pensava nisso. Aí resolvi tomar Rivotril para dormir. Tinha uma caixa em casa, dada por um amigo médico. Assisti um pouco de TV, conversei com um amigo no telefone e fui ficando bem”, diz.
Mas que mágica é essa? Quando somos pressionados, algumas áreas do cérebro passam a trabalhar mais. Vem a ansiedade. O Rivotril age estimulando justamente os mecanismos que equilibram esse estado de tensão – inibindo o que estava funcionando demais. A pessoa passa a responder menos aos estímulos externos. Fica tranquila. Ainda que o bicho esteja pegando no trabalho, o casamento indo de mal a pior e as contas se acumulando na porta. É essa sensação de paz que atrai tanta gente. Afinal, a ansiedade traz muito incômodo: suor, calafrios, insônia, taquicardia… “Muitas vezes o sofrimento se torna insuportável. O remédio é valioso quando o paciente piora”, diz Silva Costa. Para a carioca Bruna Paixão, de 32 anos, funcionou. “Um dia tomei uma bronca do meu chefe e fiquei péssima. Só pensava nisso. Aí resolvi tomar Rivotril para dormir. Tinha uma caixa em casa, dada por um amigo médico. Assisti um pouco de TV, conversei com um amigo no telefone e fui ficando bem”, diz.
Justamente por trazer essa calma toda, o
Rivotril não é recomendado a qualquer um. Seu consumo por profissionais
que têm de se manter ágeis e em estado de alerta – como pilotos de
avião e operadores de máquinas, por exemplo – é desaconselhado por
médicos. “O Rivotril dá a falsa impressão de que a pessoa produz mais,
mas a verdade é que o remédio só deixa mais calmo”, diz José Carlos
Galduroz, psiquiatra da Unifesp.
Não é só com o Rivotril que isso
acontece. Os calmantes da família dele – os chamados benzodiazepínicos –
têm o mesmo papel. São remédios como Lexotan, Diazepam e Lorax. Em
parte, o Rivotril ficou famoso ao pegar carona na onda dos “benzo”. Eles
surgiram na década de 1950, e logo viraram os substitutos para os
barbitúricos, como o Gardenal. Os barbitúricos têm indicação semelhante à
dos benzo. Mas são mais perigosos: a linha entre a dosagem indicada
para o tratamento e aquela considerada tóxica é muito tênue. A mais
famosa vítima dos excessos de barbitúricos foi Marylin Monroe (embora
haja dúvidas sobre o envenenamento acidental da atriz). Quando surgiram
os benzodiazepínicos, o mundo achou um combate mais seguro à ansiedade.
“Uma overdose de remédios como o Rivotril é praticamente impossível”,
diz Saadeh, da USP.
É verdade, o Rivotril tem berço, vem de
uma família benquista pelos médicos. Isso já garante uma popularidade.
Mas ele tem uma vantagem extra em relação aos parentes. Seu tempo de
ação é de, em média, 18 horas no organismo, entre o início do
relaxamento, o pico do efeito e a saída do corpo. É o que os médicos
chamam de meia-vida. “A meia-vida do Rivotril é uma das mais
confortáveis para o paciente, porque fica no meio-termo em relação aos
outros remédios para a ansiedade e facilita a adaptação”, diz Saadeh. Na
prática, esse meio-termo significa que o efeito do Rivotril não termina
nem cedo demais – o que poderia fazer o paciente acordar de uma noite
de sono já ansioso – nem tarde demais – o que não prolonga a sedação por
um período maior que o desejado.
No Brasil, o Rivotril tem ainda outra
vantagem importante. Repare: somos os maiores consumidores mundiais do
remédio, mas estamos apenas na 51ª colocação na lista global de consumo
de benzodiazepínicos. Ou seja: o mundo consome muitos benzo, nós
consumimos muito Rivotril. Por quê? Por causa do preço. Uma caixa de
Rivotril com 30 comprimidos (considerando a versão de 0,5 miligrama)
custa em torno de R$ 8. O principal concorrente, o Frontal, da Pfizer,
custa cerca de R$ 29.
Tudo isso faz o pessoal se esquecer da
tarja preta do remédio. Mas ela está lá por um motivo, é claro. E esse
motivo é o risco de dependência.
O risco é o mesmo visto em outros
benzodiazepínicos. São dois, aliás. O de dependência química e o de
dependência psicológica. Na química, o processo é parecido com o gerado
por drogas como álcool e cocaína. O uso prolongado torna o cérebro
dependente daquela substância para funcionar corretamente. A outra
dependência é a psicológica. A pessoa até para de tomar o remédio, mas
mantém uma caixa sempre no bolso como precaução. “Cerca de 80% das
pessoas que usam benzodiazepínicos ficam dependentes em 2 ou 3 meses de
uso”, diz Anthony Wong, diretor do Centro de Assistência Toxicológica do
Hospital das Clínicas, de São Paulo. “E a maioria tem sídrome de
abstinência se o remédio for tirado de uma hora para outra.”
Em casos mais graves, a abstinência pode
levar o paciente a uma internação. A pessoa pode ver, ouvir e sentir
coisas que não existem, apresentar delírios (como ser perseguida por
extraterrestres), agitação, depressão, apatia, entre outros sintomas. E
para cortar a dependência? “O paciente precisa querer parar. Há drogas
que tratam os sintomas da abstinência em no máximo 4 semanas”, afirma
Carlo Hubner, da PUC. Livrar-se do Rivotril é duro porque é preciso
enfrentar todos os fantasmas de que o paciente queria se livrar quando
buscou o remédio. Afinal, o remédio só esconde os problemas. Eles
continuarão lá, à espera de solução. O verdadeiro adeus é o momento em
que se aprende a lidar com a ansiedade. Sozinho. Ou talvez com uma
passadinha rápida na praia. Pensando no namorado. Ou com a ajuda daquela
lasanha (bem gorda).